quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Aldrabas Almadrabas

Este texto é subsidiário dos Tonantes, tal como foram Galos, Temor, e Gaiola, textos que se seguiram.
Quando se pega por uma ponta do novelo, surgem muitas pontas soltas, e nem sempre é fácil ligá-las. O ponto de ligação que me parece existir neste caso é a da evidência de uma sociedade muito antiga, violenta nos costumes e modos, com uma forte componente marítima que se evidenciou na pesca do atum.

Almadraba é o nome de uma técnica de pesca de atum, ancestral, cujo "espectáculo" associado levou a outro nome apropriado - "Matanza". O termo hispânico é mais usado para porcos, mas aqui ganha um significado mais brutal, independentemente da ligação do atum a bácoro-do-mar, seja ou não pelo nome da espécie Albacora (conforme apontou o Bartolomeu).

Os atuns atlânticos têm uma rota de migração que os leva do Oceano Ártico até ao Golfo do México ou, em alternativa, ao Mar Mediterrâneo. O azar dos muitos atuns que decidiam entrar no Mediterrâneo estava traçado nas Colunas de Hércules. Um conjunto de redes antecipava a passagem, permitindo a captura de uma grande quantidade de atuns. Eram depois puxados à superfície, dando-se início à matanza...
Tradição da Almadraba, ainda hoje na Sicília, e na Sardenha (Nat Geog).

No final da matanza, o mar em redor bem se poderá chamar mar vermelho... afinal uma designação antiga, aplicada à saída das Colunas de Hércules, as águas e ilhas Eritreias que já foram aqui faladas.
É reportado que a riqueza dos Duques de Medina-Sidónia se deveria à concessão dessa captura de atum na entrada de Cadiz, desde o Séc. XII.
O atum foi ainda o peixe de referência para os pescadores algarvios.
Uma dessas comunidades piscatórias era a de Monte Gordo, cujas cabanas foram incendiadas pelo Marquês de Pombal, com o objectivo de se fixarem em Vila Real de Santo António. Como já referimos, o resultado foi uma ida para Ayamonte, para a Isla Cristina... mostrando como a emigração foi sempre uma consequência do absurdo de governação interna incompetente.

Matanza semelhante ocorre com os atuns do Pacífico, por tratamento não menos pacífico feito pelos pescadores japoneses. No Japão ocorre ainda hoje outra matança que causa maior indignação... a dos golfinhos - por exemplo, no caso da baía de Taiji.
Parece natural que este prurido relativo ao consumo de carne de golfinhos não terá ocorrido sempre, e tal como as baleias eram uma fonte de grande recompensa na sua caça, o consumo de golfinhos deverá ter ocorrido abundantemente na Europa (ainda é registado nas ilhas Faroé). No Peru os golfinhos são entendidos como porcos-do-mar (a designação porcina é assim mais geral), e há ainda uma tradição antiga nas ilhas polinésias - ilhas Kiribati e ilhas Salomão... pois!
Recordamos que já mencionámos a pesca pré-histórica do atum em Timor.

Portanto, restringir estas Almadrabas antigas aos atuns seria um aldrabar da muito provável tradição, que se alargaria aos simpáticos golfinhos.
Pôr golfinhos a golfar sangue numa baía, ou num golfo, não parece algo improvável, como indica o nome - talvez numa certa visão "do fim", ou "del fim"...

Moral e Mural
Convém notar que todo o processo de domesticação abriu uma brecha mural na nossa moral.
Os animais domésticos foram tornados quase inofensivos, pacatos, aceitando a confiança humana. Em troca foram, e vão, parar ao caldeirão.
Se estamos hoje mais escandalizados com a chacina de golfinhos é porque adquirimos essa ideia de animais inofensivos, inteligentes, e simpáticos para o homem. O mesmo tipo de sensibilidade não ocorre na matanza de atuns, porque a identificação é muito menor. Poucos peixes tiveram, ou têm, a sorte dos roazes sadinos de Tróia, mesmo sendo os golfinhos competidores no pescado.

Atributos dóceis colocaram os animais domésticos sob a mira de seres com intenções pouco pacíficas. A domesticação visou servir apenas o interesse humano.
O pastor usa o pasto para o repasto. A vítima é míope e impotente face à previsão do predador. O animal transforma o pasto verde em carne vermelha, que serve o repasto do pastor.  
De forma semelhante, um predador sem visão ecológica é vítima da sua acção irreflectida. Está preso à sobrevivência das presas, e só assim é forçado a conter a sua miopia na vocação destruidora.

No entanto, a ideia de papar os fracos, está sempre no menu da força primitiva e míope. A contenção ecológica não está adquirida, é imposta pela lógica circunstancial. Isto não ocorre apenas na ementa alimentar, onde um consumo excessivo pode levar à extinção da presa. Ocorre hoje, noutros aspectos.
Por exemplo, a redução de custos de produção, por despedimento da mão-de-obra, serve uma lógica míope localizada. Ao retirar poder de compra, a maior eficácia de produção carece depois de destinatários, pois os desempregados ficam desprovidos de capacidade financeira. A redução de custos leva a uma redução do dinheiro disponível para consumo. Seguem-se mais redução de custos e novas contracções... Localmente cada gestor é uma besta cega do contexto global, vendo apenas o contexto local. Actua exactamente como um predador que se optimizar a caça, esgota as suas presas, não se dando conta que isso o condena à extinção.

A noção de "doméstico" não se resume a animais. Os trâmites de guerra condenaram gerações intermináveis ao estatuto humano de domesticação - a escravatura. Pelos escravos nasciam escravos, e praticou-se assim uma domesticação humana, muito semelhante à animal.
A escravatura era bem aceite no Antigo Testamento, e não a vemos censurada nos novos Evangelhos. Esquecemos frequentemente que a sociedade herda como natural a sua tradição, não questionando que com tradição traz em si uma contra dicção, cega à abstracção racional.
As revoltas de escravos do Império Romano ocorreram no seu crescimento, pelo elevado número de populações sujeitas a esse fado. Porém, os escravos nascidos e educados em contexto de escravatura, dificilmente teriam capacidade de questionar a sua condição natural. A situação pode ter sido bastante pior, e não será de excluir que o papel animalesco reservado aos escravos não se tenha reduzido a serem apenas bestas de carga e trabalhos indesejados. Ou seja, dito mais claramente, não é de excluir casos em que pudessem ter feito parte do menu, sendo documentado que fizeram pelo menos parte do menu leonino em circos romanos.

Filosoficamente, gregos e romanos mostraram-se pouco sensíveis à questão da escravatura, talvez exceptuando o caso dos estóicos, que não viam inferioridade na escravatura, mas um simples capricho do destino. Dificilmente encontraremos noutros, senão nos escravos, presos pela sua efectiva impotência circunstancial, o maior desejo de liberdade. Esse desejo individual, certamente que terá passado a desejo civilizacional, procurando tornar os senhores servos do seu poder... e já aqui falámos dos eunucos.

Ilhas Egadi
Bom, mas o contexto principal que aqui interessava apontar é o desse carácter inato, selvagem, capaz de chacinar centenas de atuns num mar de sangue, sem necessidade de qualquer questão moral. Esse muro não estando bem fechado na moral, permitirá sempre uma brecha imoral para actuar com a mesma crueldade e frieza no caso humano. Não há nenhuma moral num estômago vazio, a moral só é solidificada em estômagos cheios. Um estômago vazio pode ser levado a canibalismo, a violência descontrolada. Também não há nenhuma moral num cérebro vazio, e a moral só é solidificada quando o cérebro não está faminto. O mar de sangue dos atuns serve para acalmar o estômago, mas não acalma o espírito. É fácil não ser violento quando não há necessidade de violência, o que é mais difícil é estabelecer o muro moral que separa a actuação do carniceiro, capaz de retalhar animais, mas incapaz de retalhar humanos. Não há nenhuma moral pré-estabelecida, o contexto moral que herdámos resultou apenas de uma compreensão ecológica, global, que foi decorada com outros conceitos.

Nas ilhas Egadi, na extremidade ocidental da Sicília, vemos pinturas rupestres cuja datação está atribuída entre os 10 e 5 mil anos. Trata-se praticamente do mesmo local onde se pratica ainda hoje a Almadraba, a matança de atuns. Aí, na chamada Grotta del Genovese podemos ver a talvez representação mais antiga de um golfinho, entre outros animais.
Grotta del Genovese (Ilhas Egadi, Sicília)

Muito provavelmente, a técnica da almadraba é tão antiga quanto estas pinturas rupestres, sendo tradicional a fábrica de atum Tonnara de Favignaga, mas é difícil perceber qual a moral subjacente ao mural pintado.
Havia uma cultura de despojo local, ou uma cultura de entendimento global? O que é certo é que o despojo local, a falta de entendimento moral na ecologia global, sempre se sobrepôs durante os milénios seguintes. A mais pequena brecha moral sempre permitiu abrir uma violência e barbárie descontrolada na cultura mediterrânica e ocidental.


Sem comentários:

Enviar um comentário