sábado, 30 de abril de 2016

dos Comentários (20) - milho e milhão

Através de email chegou-nos gentilmente o seguinte comentário (de Moura Sherazade):
Encontro no texto - Sobre um conjunto de silos em Beja-, disponível online, o seguinte: 
«Os solos de boa qualidade proporcionaram ao Alentejo a possibilidade de produção de vários tipos de cereal, existindo desde os textos das Inquirições gerais de 1220, 1258 e 1284, nos contratos de aforamento de terras de D. Afonso III, de D. Dinis e das instituições religiosas referências ao trigo, à cevada, ao centeio e ao milho que eram a moeda de troca por excelência.»
Esta referência sobre milho em época medieval vem num artigo
... e o texto continua acrescentando - «O termo Pão era a forma mais corrente de designar aqueles cereais, sendo o trigo o mais utilizado em todos os períodos (Goes, 1998)».

O assunto do "problema do milho" foi abordado pelo José Manuel em 2009:
Cultura de milho na Suméria (de um vídeo de Gunnar Thompson)
... onde se apresenta uma série de vídeos de Gunnar Thompson - que argumentava sobre referências ao milho nas civilizações egípcias, sumérias e babilónias, colocando isso como prova de que haveria viagens à América em tempos antigos.

Ora, ainda acerca disso também escrevi algo, com base em traduções inglesas de textos romanos, que usavam a palavra "corn"... e que davam a Turdetania (Andaluzia) como exportadora deste cereal.

Só que o assunto das referências antigas ao "milho" foi convenientemente blindado com uma armadilha institucionalizada. Por exemplo, ainda que hoje em inglês "corn" designe essencialmente milho, é suposto que antes do Séc. XIX tenha servido indistintamente para outros cereais. Por isso, vi-me obrigado depois a fazer uma correcção ao texto... Será o mesmo do que se institucionalizar que antigas menções a «ouro» diziam respeito a qualquer metal brilhante, e a partir do momento em que se institucionalizam significados diferentes para as mesmas palavras, bloqueiam-se leituras modernas de textos antigos.

Pinho Leal no final do Séc. XIX já apanhou essa fase de «revolução cultural» da maçaroca maçónica, e assim diz-nos o seguinte:
MAÇAROCA — (milho de maçaroca) - portuguez antigo - milho grosso ou milhão. Julga-se geralmente que o milho grosso não foi conhecido em Portugal senão depois do descobrimento de Guiné, por Diogo da Azambuja, em 1482. Os portuguezes o trouxeram para o reino, e diz se que foi aqui cultivado pela 1ª vez nos campos de Coimbra, d'onde se propagou por todo o reino. (Vide Milhom.) 
Antes de comentar esta referência, que é significativa, vejamos o que nos diz sobre «milhom»
MILHOM — portuguez antigo - milho miúdo. Em um testamento de S. Simão da Junqueira, feito em 1289, se diz :- It. a Stevão Joannes, de Perafita, ou aos seos heréés (herdeiros) hum quarteiro de milhom.
Em todos os documentos antigos, onde se fala de milhom, deve sempre entender-se milho miúdo; porque não havia outro.
O que hoje chamamos simplesmente milho, milho grosso, milho maiz, milhão, e milho de maçaroca, só foi conhecido em Portugal, no século XVII, trazendo-o da Índia, Paulo de Braga. Consta que ao principio era proibido semeá-lo, e só alguns cultivavam poucos pés, nas suas hortas e jardins.
É tradição que a primeira cultura em grande, deste cereal, foi no campo de Coimbra.
Ainda no principio d'este século, pouco milho grosso se cultivava na Extremadura, Alemtejo e Algarve; hoje constitui a principal cultura de todas as províncias de Portugal e ilhas, e é o pão da maior parte dos nossos lavradores e de muitas famílias, sobre tudo, de Coimbra para o norte. 
Qual o problema?
O problema é que o uso antigo da palavra «milho» era inconveniente, e na realidade existe também uma outra espécie diferente o «sorgo», cujo aspecto poderia servir a confusão:
O sorgo tem semelhanças com o milho Zea mays...
Há um estudo que me parece que tenta clarificar isto - O Zea mays e a expansão portuguesa (de Joaquim Lino da Silva, 1998), referindo «Cadornega, em Angola, usa milho-zaburro como sinónimo de sorgo, e com justificação», ou ainda mencionando João de Barros «[Barros] diz que o comum mantimento daqueles povos é o milho de maçaroca, a que chamamos zaburro, donde se infere que o milho zaburro vem a ser o mesmo que o Milho grande [...]», acrescentando «Nós estávamos, na realidade enganados, o milho zaburro de Guiné, e das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé não era um Sorghum; mas ainda mantemos que Jeffreys [não é só este autor] está igualmente errado, quando identifica zaburro com Zea Mays. Há outra variedade de milho, diferente dos dois.»

Portanto, vemos que se trata de terreno muito pantanoso... bem armadilhado com incertezas, e daí ter feito uma certa retirada estratégica no texto "Milho a Milhas", porque não vale a pena discorrer por caminhos pantanosos, quando temos centenas doutros bem seguros.

Pinho Leal dará como possível introdução do «milho normal» em Coimbra no Séc. XVII, e encontrámos uma ordenação feita em Lisboa, em 8 de Setembro de 1606 (Emmanuelis Alvarez Pegas - Commentaria ad ordinationes Regni Portugalliae, pág. 613) que se refere a danos nos diques (marachões), referindo este tipo de culturas em várias ocasiões «hum alqueyre de milho nas eyras, o qual o dito Provedor o fará receber, & arrecadar de cada pessoa, ou pessoas, que a isso estiverem obrigadas (...)», ou ainda «vendendo-se o dito milho, o dinheyro delle se meterá em hum cofre, como abayxo irá declarado (...)».

Trata-se de uma situação semelhante à das laranjas... que se atribui também a chegada apenas em tempo dos descobrimentos, apesar de termos o nome "Portugal" associado a laranjas em diversos países, nomeadamente na Grécia (Πορτοκάλι - Portokáli) e em países muçulmanos.

Há povoações com o nome "Milheiral", etc... mas como vimos é sempre fácil argumentar que se tratava do sorgo, do milho-zaburro, ou outra espécie que não entre em conflito com a chegada à América, e assim ainda que mesmo João de Barros refira o consumo de milho por outros povos, pode remeter-se a maçaroca ao sorgo, e esse caminho estará institucionalmente minado... como Pinho Leal assinalou - até chegou a haver ordem de proibição de cultivo.
O que é mais interessante é Pinho Leal remeter a origem do "milho grande" a Diogo de Azambuja, o homem que ergueu o Castelo da Mina... que na nossa opinião, e antiga fundamentação, não seria o Forte da Mina existente em África, mas sim uma construção paralela feita próximo de Istmina, na Colômbia, para negociar com os Incas, e da qual restou a imagem de castelo português existente no Mapa de João de Lisboa, em território Inca. Portanto, essa referência ao milho poderia remeter aos Incas... mas tratando-se da maçaroca usada na Guiné, também pode remeter a outra interpretação, e por isso não vale a pena alimentar uma discussão desse tipo, tendo os Mapas de João de Lisboa como prova indelével de tudo o que afirmamos.

O que nos parece claro é que depois foi outra a maçaroca, foi outro o milhão... ou seja, foi a maçaroca dos milhões que comandou os contos da história. Ora, como um conto valia um milhão, houve facilmente quem trocasse a História por contos de milhões, mas também aprendemos que o primeiro milho é dos pardais, e convirá que estes não abusem da paciência do milhafre...

domingo, 24 de abril de 2016

O 25 de Abril e a NATO

STANAVFORLANT foi acrónimo para "Standing Naval Force Atlantic" que englobava navios de diversos países da NATO, desde 1968, em exercício e patrulha pelo norte do Oceano Atlântico... "contra os russos", como era característica da época de "guerra fria".

Acontece que em 1974, esta força iniciou um périplo atlântico, e estava estacionada em Lisboa, por "grande coincidência", em Abril:

Cruise Book - 1974, do navio americano USS Julius A. Furer (DLG 6, primeiro à esquerda)
O plano da expedição está traçado numa carta naval, onde como é fácil ver, Lisboa era apenas o 6º destino, de um conjunto de 17 escalas programadas.

Ora, o Cruise Book de 1974 é escrito no passado provavelmente em Julho de 1974... e há um destaque sobre a passagem por Lisboa, e esse destaque era sobre o quê?

- After almost two weeks crossing the fickle gray Atlantic, the exciting and unforseen adventures of Lisbon (Texas Bar, anyone?) were a relief to many seafarers.

Certo, certíssimo, o destaque ia para o Texas Bar, no Cais do Sodré.

- For the next two-and-one-half weeks, NATO shipmates were to enjoy a most pleasant and friendly port-of-call - not to mention the 25th anniversary of the NATO Alliance!


Ah, claro, para além do Texas Bar havia o 25º aniversário da NATO (a 4 de Abril de 1974). 
Sendo o relato posterior, de Junho... fica a imagem duma tourada no Campo Pequeno, e abaixo uma imagem da comemoração dos 25 anos da NATO em solo português. 

Sendo mais um livro de fotos que outra coisa, o facto de ter ocorrido o 25 de Abril durante a estadia das forças da NATO (e assim ter mudado o regime que os acolheu nas comemorações dos 25 anos da NATO), foi um mero detalhe não mencionado, afinal "unforseen adventures" eram no Texas Bar.

Se pelo lado americano não conseguimos mais informação, pelo lado canadiano, a perspectiva pareceu algo diferente:
  • International Operation Name:  Portugal 1974
  • International Mission Name:  Portugal 1974
  • Mandating Organization:  Government of Canada
  • Region Name:  Europe
  • Location:  Portugal
  • Mission Date:  4/25/1974 - 4/25/1974
  • Mission Mandate: Potential non-combatant evacuation operation if the coup of 25 April 1974 had become prolonged or violent.
  • Mission/Operation Notes:
For 48 years, Portugal had been ruled by a dictatorship, first by Antonio Salazar and then by Marcello Caetano. On 25 April 1974, members of the Movimento das Forcas Armadas (MFA - Armed Forces Movement), composed primarily of military personnel at the captain and major ranks, staged an almost bloodless coup d’état. Known as the “Carnation Revolution”, the revolution converted Portugal from a fascist state into a liberal democracy in two years. The MFA was led and organized by Major Otelo Saraiva de Carvalho.
Although the MFA did not have the support of senior officers, many of whom were loyal to the regime, they faced little opposition from the rank and file of the Portuguese armed forces and it took only one day for them to bring down the government.
Canada’s relationship to the coup was purely by chance. NATO naval Exercise Dawn Patrol was scheduled to start on the morning of 25 April. On 16 April, HMC Ships Preserver, Huron, Iroquois, Assiniboine, and Annapolis departed Halifax for Lisbon. They and other NATO vessels rendezvoused in Lisbon on 23 April for pre-exercise briefings and a two-day port visit. HMCS Yukon was the flagship for the Standing Naval Force Atlantic, meeting up with the other NATO ships in Lisbon, where she turned over flagship duties to HMCS Annapolis. While events unfolded ashore, the NATO ships were moved from berths alongside Lisbon harbour to anchorages in the harbour – this was part of the normal schedule and not related to the coup. Later that morning, around 11:00 AM, they departed, following the script of the exercise.
The only Canadian ship to remain in Lisbon was HMCS Assiniboine. Enroute to Lisbon, she had been detached from the Canadian Task Group on 22 April to assist the MV Trade Mariner, which had suffered an engine failure. Assiniboine towed the ship into Lisbon, arriving on 24 April. As a result, she received permission to stay in Lisbon an extra day, to 26 April. At 7:00 AM on 25 April, Assiniboine was moved to an anchorage so the rest of the NATO fleet could sail later in the morning. Shortly after 9:00 AM, the Almirante Gago Countinho, guns at the ready, was observed circling the harbour and the Assiniboine. Assiniboine moved to a higher state of watertight readiness; however, by mid morning the tension was defused when the Coutinho elevated its guns skywards, indicating its neutrality in the coup attempt.
About 10:25 AM, the commanding officer of Assiniboine took a small party ashore to meet the Canadian ambassador and seek guidance. Unfortunately, lack of knowledge about what was happening prevented the Ambassador from providing any specific instructions. What was known was that there appeared to be no direct threat to Canadians. The Commanding Officer was later approached by the American Assistant Naval Attaché who could provide some details, which were then passed on to the Canadian Embassy. By 3:00 PM Assiniboine slipped her anchorage and sailed down the Tagus River.
An Argus maritime patrol aircraft detachment, from 405 Squadron, happened to be at Montijo, on the other side of the harbour from Lisbon, preparing for Exercise Dawn Patrol as well. With the airport shut down, they could neither depart, nor take part in the exercise.
Como saliento no texto, e nem era preciso referi-lo, "a participação canadiana no golpe foi completamente acidental", tal como foi a de toda a NATO, que estava ali por acaso - no Texas Bar, já se sabe, e dá-se uma revolução - que aborrecimento. Querem sair todos às 11h00 do dia 25 de Abril, conforme planeado no exercício "Patrulha da Madrugada"... um nome certamente inspirado nas madrugadas ("dawn") após o Texas Bar.
Ora, há uma fragata portuguesa - a Gago Coutinho, que circunda o navio da NATO, Assiniboine - um dos 5 navios canadianos, que se juntaram com os restantes navios da NATO no dia 23 de Abril - para briefing do exercício e visitar o porto. Os canadianos, menos explícitos, não revelam que a verdadeira intenção era visitar o Texas Bar. As coisas com o navio Assiniboine só acalmam a meio da manhã, quando a Gago Coutinho levanta as armas para o céu - indicando neutralidade no golpe... isto numa altura em que os canadianos não sabiam o que se passava em Lisboa, mas achavam por bem que os aliados portugueses não interviessem, no que quer que ocorresse (imagine-se se fossem os comunistas com apoio dos russos...).

Ora, também como manifesta coincidência, é no dia 23 de Abril que se dá o primeiro sinal de vida dos revoltosos, com o estabelecimento da linha de transmissões entre os Pupilos e o Colégio Militar, com o posto de comando do MFA na Pontinha... e curiosamente, noticiava o Jornal de Notícias que nesse dia 23, o norte do país tinha estado isolado do mundo. «caiu uma faísca no cabo coaxial Porto – Lisboa»
A preocupação do MFA com as forças da NATO estacionadas em Lisboa... e que "nada sabiam do golpe" (lembremo-nos), era uma preocupação nula. Avaliando a versatilidade de Otelo, o MFA teria controlado a situação com o dono do Texas Bar, que entreteria os gringos.

Em 2014, quarenta anos depois, ainda se discutia qual o papel do Comandante da Gago Coutinho, ou seja, António Seixas Louçã, numa disputa de um comunicado de vários intervenientes no 25 de Abril e a versão dos filhos do comandante (um dos quais, o conhecido Francisco Louçã).
Quase como análogo à posição americana ou canadiana, a relevância das forças da NATO é também negligenciada pelos "capitães de Abril"... os gringos estavam ali por acaso, e não interessava nada haver em Lisboa uma força militar capaz de tomar a cidade de assalto.

Não se percebe que raio de glória é que esta gente quer levar para as tumbas, mas certamente parece que não deixam cá nenhum apego pela verdade... e à conta de meias-verdades que caem bem, a um ou a outro, a pena que umas gerações deixam às outras seguintes, é a persistência na ocultação da verdade.

Vem isto a propósito de um postal que coloquei no Odemaia: Mary Poppins, Dona Celeste e o 25 de Abril... face a informação de Carlos S. Silva, e onde se mostram fotos da Gago Coutinho com as canhoeiras levantadas, e do contra-torpedeiro canadiano Huron, com canhão em posição de disparo.
Fragata Gago Coutinho (F 473) ameaça bombardear posições revoltosas
Contra-torpedeiro Huron (DDG 281) da NATO bloquearia a Gago Coutinho
face ao seu alvo - forças de Salgueiro Maia
Na revolução republicana de 1910, o grão-mestre maçon foi pedir a benção às lojas francesa e inglesa, antes que mexessem uma palha... Neste caso, passados estes anos, continua a insistir-se no fabrico caseiro da revolução, sem conhecimento externo. Acresce a presença de um enorme contigente da NATO no porto de Lisboa, que se reune a 23 e parte a 25 de Abril.
Já sabemos, foi tudo co-coincidência, mas tanta incidência de CoCos tem um preço, isto mesmo sem precisar de ir buscar o jardim da Celeste para falar das flores.


sábado, 9 de abril de 2016

Bene Cuela da Venezuela & Chagres do Panamá

Há já mais de 6 anos que notei num detalhe de um dos mapas do Tratado de Marinharia de João de Lisboa, e que dizia respeito ao nome aí dado ao Lago de Maracaíbo, na Venezuela, conforme se pode ver no seguinte detalhe do mapa:
Tratado de Marinharia de João de Lisboa - em destaque (amarelo): Bene Cuella, la Laguna de Bene Cuela  
Portanto aquela lagoa, que hoje tem o nome de Maracaíbo (que é o nome de uma das grandes cidades venezuelanas), situada na zona em que o Golfo da Venezuela "quase cola" com o Lago de Maracaíbo, chegou a ter o nome de "Bene Cuela".

Ou seja, desde essa altura que ficou para mim claro que o nome Venezuela resultava de uma pequena deturpação deste "Bene Cuela", passada a "Vene Cuela" ou "Vene Çuela" e depois a "Veneçuela" ou "Venezuela". Não é assim que é entendido normalmente, como se poderá ler na wikipedia, por exemplo na Etimologia de Venezuela, onde se dá numa versão a deturpação do nome de Veneza, por motivo de baptismo remetido a Vespúcio, ou ainda outras versões alternativas, mas que não referem esta designação de "Bene Cuela", que se terá perdido nos tempos conturbados. 

Tempos de ignorância dos mapas portugueses, por motivo de ocultação destes mapas durante séculos, ou por motivo de ocultação das cabeças... em tempos mais recentes. Já que, sendo estes mapas bem conhecidos há muitas dezenas de anos - e pela minha parte, boa publicidade lhes fiz durante os últimos 6 anos... mantém-se toda a ignorância, na maioria das vezes porque as pessoas simplesmente preferem a versão simplificada de fechar os olhos, sendo mais confortável aceitar uma realidade fabricada pelo contexto social, do que questioná-la minimamente.

Estes mapas portugueses de João de Lisboa (a que atribuo a datação de 1514-25) dão o detalhe da localização de ilhas, algumas das quais tão pequenas que é preciso usar um grande zoom no Google Maps para as detectar.
Se a grande maioria das designações costeiras mudou, o nome das ilhas nem por isso... ou vejamos:
O mesmo mapa invertido (para leitura dos nomes).
A sequência não deixa muitas dúvidas sobre a correspondência directa:

A seguir à Tortuga, aparecem ilhas não nomeadas (La Margarita e Blanquilla) e o nome "flaires" é quase mantido em pequenos ilhéus - nomeadamente na isla Fraile grande, assim como se mantém a Sola (com apenas 500 metros quadrados) e os Testigos. Na imagem vemos ainda a grande ilha de Trinidad e Tobago, mas sem qualquer nome... continuando com os nomes "lagranada" (Granada),  "samtaluzia" (Saint Lucia), "matririno" (Martinique), etc...

E se o mapa, no que diz respeito aos "Paraísos Fiscais" seguintes, é menos exaustivo... porque são muitas as ilhas nas pequenas Antilhas. indo na direcção oposta (na figura: acima de Aruba) encontramos a designação "momjes" que corresponde aos ilhéus Monje com 20 hectares na totalidade.
A razão da atenção dada a uns casos, e não a outros, corresponde à importância do aviso deste ilhéus que seriam pouco mais que perigosos recifes, em zonas menos esperadas. Há ainda a menção ao Cabo "La Vela", que aparece com o nome similar "c.lavela" ou "c.lanela".

De qualquer forma, para os que sempre julgam que o grande Pedro Nunes era um "bazófias" quando dizia que "não havia no mundo nenhum ilhéu ou baixio, que não tivesse sido cartografado pelos portugueses", creio que este exemplo aqui trazido é significativo. Afinal é apenas a bazófia dos pequenos que procura diminuir, ou desacreditar, grandes feitos.

Mas a coisa continua... por esse lado, da Colômbia, em direcção ao Panamá.

As designações das ilhas de "arena, sto baru, são bernaldo, baruti" devem corresponder aos arquipélagos colombiano do Rosário, de San Bernardo, de Baru. Depois há correspondência mais directa com a ilha Fuerte, ou ainda de "totugas" com a ilha Tortuguilla
Mais longe, já na região do Panamá, aparece três ilhas neste mapa:
- Sãt'ãtº (talvez Santo André)
- Samta cª (provavelmente Santa Catalina e Providencia)
- Sã visëte (estará agora submersa, mas poderia ser o banco Quita-sueño)
bem como outros ilhéus mais afastados "la Serana", que devem corresponder ao atol do banco "La Serrana".

Finalmente, chegados ao Panamá, vou apenas voltar a um velho assunto - Chagres e Sagres!
O Rio Chagres é uma parte que faz o Canal do Panamá.
Há seis anos, quando vi este mapa, insisti na possibilidade da inscrição referir "c sagre" e não "chagre", mas parece-me hoje que designa mesmo "chagre", e portanto poderia mencionar o "Rio Chagres", mas no mapa consta logo também "R de lagartos", e assim o nome do rio poderia ser "Lagartos" e não Chagres.

A questão era muito simples e explicada num dos primeiros textos que escrevi chamado "Encoberto"... é que existiu na Guiné, em Conacri um cabo também chamado Sagres:
--- "Cape Sagres is a cape in Guinea and is nearby to Tombo Island, Conakry and Camayenne."

Portanto, termos um outro Cabo Sagres junto a uma Ilha do Tombo... digamos que é suficientemente estranho... mesmo se a ilha do Tombo não tivesse a Torre do Tombo. 
- E a razão pela qual isto ligava ao Panamá?
- Simples... a latitude de Sagres na Guiné é 9.5º N, enquanto Chagres no Panamá está a 9.25ºN, mas o cabo em questão estaria mesmo a 9º.6 N. Em vez da Ilha do Tombo, há nesse cabo panamiano a Ilha Tambor.
Ou seja, a diferença de latitude sendo 0.1º é mínima, estaria bem abaixo do erro de medições feitas à época do Infante D. Henrique, ou até ao Séc. XIX, e enquadrar-se-ia bem no paralelismo África-América, como processo de relatar em África os progressos que se faziam na América... lembrando o que Frei Luís de Sousa comentava sobre as "duas pirâmides" no símbolo "talant de bien faire" do Infante D. Henrique (ou seja, um paralelismo entre pirâmides mexicanas e africanas-egípcias, também em latitudes semelhantes).

Bom, mas sendo ou não o nome do cabo... região que também ficou depois como "Nombre de Dios", o Rio Chagres teve uma importante fortaleza - o Forte de San Lorenzo, que salvaguardava o comércio entre Pacífico e Atlântico. Se essa fortaleza já existia antes dos espanhóis... pois isso prende-se com todo o contexto subjacente à passagem do controlo americano, por parte dos portugueses aos espanhóis, no reinado de D. Manuel. Essa seria a justificação de termos muito melhores mapas portugueses da região, que alguma vez tivemos do espanhóis na mesma época. A cedência de todo esse controlo fazia parte do negócio de paz das Tordesilhas.

Essa fortaleza de San Lorenzo foi alvo de um grande ataque pelo pirata Henry Morgan... ao serviço de Sua Majestade, o rei Charles II, apesar de haver paz com os espanhóis. A partir dessa base no Rio Chagres, foi atacada a própria cidade do Panamá, em 1671.
Eram tempos em que a pirataria em paraísos fiscais, ou melhor em paragens das Caraíbas, fazia parte do negócio dos reinos, conseguindo de forma ilegal pressionar o que não conseguiam impor de forma legal.
Bom, e por que razão menciono isto?...
Henry Morgan - pirata e depois almirante da Royal Navy (1635-1688)
Henry Morgan - fundador da empresa especuladora Morgan-Stanley em 1935

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Druidas, segundo Pinho Leal

Quando Roma procurava ainda expandir-se na península itálica, a parte norte dessa península esteve sob longo poder dos gauleses, de tempos bem anteriores à fundação de Roma, e a região do norte de Itália era mesmo conhecida como Gália Cisalpina, incluindo o vale do Rio Pó, até aos montes Apeninos. Mesmo quando Roma assegurou a parte sul grega, da Apulia e Calabria, ao tempo das primeiras Guerras Púnicas com Cartago, Roma ainda não tinha assegurado a parte norte de Itália, pela qual Aníbal avançou contra Roma, com a complacência dos gauleses aí estacionados.

Um dos episódios marcantes de Roma foi a sua invasão pelos gauleses de Breno, c. 390 a.C., após a vitória na Batalha de Ália, quando Breno passou o Rubicão e saqueou praticamente toda a cidade, à excepção do monte Capitólio, onde os romanos aguentaram o cerco, e procuraram negociar uma paz em troca de um pesado resgate de ouro. Ao protesto de que a balança não se alterava por mais ouro que os romanos juntassem, Breno terá respondido "Vae victis" - algo como "ai dos vencidos"... pois o seu peso só era medido na balança dos vencedores.
O quinhão de Breno nos despojos romanos (Paul Jamin, 1893)
Assim, é bastante simbólica a conquista da Gália por Júlio César, exorcizando o fantasma de Breno, ao contrapor a famosa frase "Veni, vidi, vici".
Os gauleses, ou celtas (segundo a designação grega), estenderam-se por um território europeu enorme, bastante superior à França, e se fizeram também a sua incursão por território ibérico por um lado, por outro lado ameaçaram toda a Grécia, derrotando os gregos nas Termópilas, e avançando até à região turca da Anatólia onde se fixaram, ficando aí conhecidos como Gálatas (aliás, ainda hoje existe o clube turco Galatasaray).
Sendo as Termópilas o local mítico da resistência grega "dos trezentos" contra os persas, ficou bem menos famosa a derrota grega contra os gauleses de Breno - um líder com o mesmo nome do que antes havia saqueado Roma (ou eventualmente a palavra "breno" designaria o líder).
Foram finalmente travados por Átalo, Rei de Pérgamo, do que restou simbolicamente a notável estátua do "gaulês moribundo" - que depois os romanos reproduziram, talvez aí já comemorando as vitórias de César na Gália.
"O gaulês moribundo", estátua do Séc. III a.C. - cópia romana.
No peso distorcido da histórica balança gaulesa de Breno, se os romanos preservaram algumas partes da história dos seus inimigos, apagaram uma boa parte da memória dos vencidos... vae victis!
Assim, pelo lado gaulês, desse seu grande império europeu que foi da Bretanha até à Turquia, praticamente restou um mesmo nome - Breno - para dois líderes diferentes. Depois disso, ficou essencialmente o nome do líder derrotado por César - Vercingetorix.

Aliás, uma boa parte do que restou sobre os gauleses/celtas foi a descrição feita pelo seu conquistador - Júlio César, que em particular apontava a grande superioridade naval dos Venetos sobre os Romanos, na navegação atlântica (Venetos, que estavam na Gália, mas que antes tinham também estado na região de Veneza).

No entanto, uma grande atracção que se veio a verificar na cultura francesa no Séc. XIX, procurou recuperar a memória cultural pela tradição antiga, nomeadamente foi recuperado um fascínio sobre os seus sacerdotes - os druidas - capazes de notáveis poções mágicas, conforme ilustrado nos álbuns de banda desenhada "Asterix".

Recuperamos aqui um informativo texto de Pinho Leal sobre esses druidas, que seguirá certamente alguma leitura francesa da época, onde ele se deverá ter baseado.

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DRUIDAS E SUA RELIGIÃO, 
LEIS, USOS, COSTUMES, GERARCHIAS, etc

por Augusto Pinho Leal

em Portugal Antigo e Moderno, Vol. 2 (pág. 482)

César (nos seus Comentários) diz que a religião druidica teve origem em Inglaterra; porém Tácito (nos seus Anais) diz que os gauleses aportando a esta ilha aí tinham levado as suas crenças.
Parece que Tácito tem razão, mas os druidas ingleses (ou do Norte) conservaram com mais pureza a sua religião e tradições.
A religião dos gauleses foi sempre mais esclarecida que a dos outros povos de então. Suas ideias sobre a divindade eram muito mais justas e mais espirituais do que as dos gregos e as dos romanos.
Tácito, Máximo de Tyro e outros historiadores nos dizem que os druidas estavam convencidos de que se deve honrar o Ser Supremo, pelo respeito e o silêncio tanto como pelos sacrifícios; mas esta simplicidade primitiva se foi perdendo pouco a pouco e já não existia ao tempo das conquistas dos romanos.
Os druidas, esquecendo as suas primeiras tradições, se deram à adivinhação e à magia e toleravam os horrorosos sacrifícios de vítimas humanas, em honra de Esus e Teutatés. Tácito Lactancio e Lucano aos testificam esta degradação.
As conquistas de Júlio César introduziram novos deuses nas Gaulas, fundando-se então os primeiros templos, enquanto que os druidas da Inglaterra continuaram o exercício da sua religião no centro das florestas, que para eles eram sagradas.
Os gauleses tinham no interior dos bosques espaços consagrados ao culto e às ceremónias religiosas. Era ali que eles enterravam os tesouros tomados aos inimigos, e que imolavam os prisioneiros. Fechavam-nos em grandes gaiolas feitas de vimes, cercados de matérias combustíveis e lhes lançavam fogo.

Diferentes classes de druidas — Sua maneira de viver — Seus vestidos e funções.
A palavra druida vem incontestavelmente do substantivo céltico deru, que quer dizer - carvalho.
Estes ministros se dividiam em diferentes classes.
Os druidas formavam a primeira, e eram os supremos chefes, tão respeitados que os demais deviam arredar-se quando eles apareciam e não podiam chegar à sua presença sem terem obtido licença para isso.
Os ministros inferiores eram:
  • os bardos,
  • os saronides,
  • e os eubages ou vacerres.
Os bardos, cujo nome céltico quer dizer cantor, celebravam em verso as acções dos heróis, cantando ao som das suas harpas.
Ligava-se tanto valor aos seus versos que eles bastavam para imortalizar. Ainda que menos poderosos que os druidas, gozavam tamanha consideração que, apresentando-se no momento em que dois exércitos estavam a ponto de combater, ou já tinham mesmo principiado a batalha, depunham as armas para ouvirem as suas propostas.
Não se limitavam a cantar as acções dos heróis, tinham também o direito de censurar as acções dos particulares que se apartavam do cumprimento dos seus deveres. Os saronides instruíam a mocidade, inspirando-lhe sentimentos virtuosos.
Os eubages tinham o cuidado dos sacrifícios e se aplicavam à contemplação da natureza.
A origem dos druidas se perde na mais remota antiguidade. Aristóteles, Phocion e muitos outros escritores que os precederam, os descrevem como os homens mais esclarecidos em matérias de religião. Tinha-se tão grande crença no seu saber, que Cícero diz que eles foram os inventores da mitologia.
Os druidas, ocultos em suas florestas, viviam na maior austeridade. Era ali que as nações os iam consultar. Eles formavam diferentes colégios nas Gaulas; o mais célebre de todos era o do país de Chartrain; o chefe deste colégio era o soberano pontífice das Gaulas.
Seus vestidos diferiam alguma coisa segundo as províncias em que viviam ou os graus que exerciam.
A cerimónia da profissão se fazia recebendo o abraço ("accolade") dos velhos druidas. O candidato, depois disto, deixava o vestido ordinário para vestir o dos druidas, que era uma túnica, chegando apenas ao joelho. As mulheres não podiam ultimamente ser admitidas ao sacerdócio.
Era muito grande a autoridade dos druidas. Presidiam aos estados, decidiam da paz ou da guerra; castigavam os culpados, depunham os magistrados e mesmo os reis, se eles não observavam as leis do país. Sua gerarchia era superior à dos nobres. Nomeavam anualmente os magistrados que deviam governar as cidades, podendo elevar qualquer deles à dignidade de vergobret, que igualava à dos reis; mas este vergobret nada podia fazer sem consentimento dos druidas, que, decidiam também, sem apelo nem agravo, as contendas e demandas dos particulares, cujo vencido se devia submeter às suas decisões, sob pena de ser ferido de anátema, e desde então todo o sacrifício lhe era interdito, toda a nação o considerava ímpio e ninguém ousava comunicar com ele.
Eram dispensados de ir à guerra, e de pagar tributos. Já se vê que o numero dos aspirantes a druidas era imenso, jamais porque admitia todos os estados e profissões; mas tinha os inconvenientes de um diuturno noviciado e da indispensável necessidade de decorar mui prodigioso número de versos, que continham as máximas sobre a religião e a politica.
As mulheres gaulesas podiam antigamente ser admitidas na gerarchia dos druidas (ser druidesses) e gozavam então todas as prerrogativas da ordem; porém exerciam as suas funções separadas dos homens. Suas adivinhações as tinham tornado mais célebres do que aos próprios druidas.
Quando Aníbal passou às Gaulas, ainda elas exerciam o direito supremo, e tanto que se estipulou em um tratado que ele fez com os gauleses, que «se algum cartaginês prejudicar por qualquer modo a um gaulês, a causa será levada ao tribunal das mulheres gaulesas».
Com o andar do tempo, os druidas despojaram as mulheres desta autoridade, mas ignora-se a época desta usurpação.

Doutrina dos druidas — Suas superstições 
Ceremonia do gui [agarico, cogumelo parasita] do carvalho.

Toda a doutrina druidica tendia a tornar os homens sábios, justos, bravos e religiosos.
Os pontos fundamentais desta doutrina se reduziam a três:
  • adorar os deuses,
  • não prejudicar o próximo,
  • e ser valoroso.
Pompónio Mela diz que a ciência dos druidas consistia em conhecer a forma e grandeza do Ser Supremo, o curso dos astros e das revoluções do globo.
Criam firmemente na imortalidade da alma e consideravam a morte como um seguro meio de irem gozar uma existência mais venturosa.
Os que morriam em paz, no centro das suas famílias eram enterrados sem pompa e sem elogios e sem as canções compostas em honra dos mortos; porém os que perdiam a vida em serviço da pátria tinham tudo isto; porque acreditavam que eles sobreviviam a si mesmos e transmitiam seus nomes às gerações futuras, acreditando-se que eles iam gozar a felicidade eterna no seio da divindade. Só eles tinham túmulos e epitáfios.
Os que não tinham ilustrado a sua vida com alguma acção guerreira, brilhante ou útil ao bem geral, eram condenados a um completo e eterno esquecimento.
O génio belicoso dos gauleses e dos outros celtas dava razão a estas crenças, pois que eles nada prezavam tanto como a profissão das armas.
Os druidas ensinavam que um dia a agua e o fogo destruiriam todas as coisas.

Criam na metempsychose
(Todos sabem que a metempsychose é a transmigração das almas de uns para outros corpos), 
e não a adoptaram da doutrina de Pitágoras, pois quando este sábio grego viajou nas Gaulas, já esta máxima era ali adoptada havia muito tempo.
De tempo imemorial tinham o costume de sepultar os mortos ou de guardar suas cinzas em urnas funerárias. Nos seus túmulos se guardavam suas armas, seus moveis preciosos e as cédulas do dinheiro que haviam emprestado. Os vivos lançavam nas sepulturas cartas dirigidas aos seus amigos falecidos, na certeza de que elas iam ao seu destino.
Nunca escreviam as suas máximas ou ciências. Era em versos que eles conservavam os seus conhecimentos e era necessário aprende-los de cor.
Estes versos eram em tão grande número, que levavam de 15 a 20 anos a decorar.
Segundo Júlio César, a doutrina dos druidas era misteriosa e só deles conhecida. Também cultivavam a medicina, no que eram considerados peritíssimos.
Estes sábios tão respeitados e respeitáveis durante muitos séculos, principiaram depois a degenerar, dedicando-se à astrologia, à magia e à arte de adivinhar, na esperança de aumentarem o seu crédito e o seu poder.
Tinham bastantes conhecimentos sobre botânica, porém misturavam-lhe muitas práticas misteriosas, sobretudo na colheita das plantas medicinais.
Plínio, o naturalista, diz o meio de que se serviam para colher o selage (planta medicinal, espécie de aipo silvestre). Devia ser arrancado sem instrumento cortante e com a mão direita inteiramente coberta com uma parte da roupa. Passavam depois a planta para a mão esquerda, com muita rapidez, como se fosse um roubo que se pretendesse esconder. Deviam os apanhadores estar vestidos de branco, ter os pés nus e oferecer um sacrifício com pão e vinho.
verbena colhia-se antes de nascer o sol, no primeiro dia da Canícula, depois de se ter oferecido à Terra um sacrifício de expiação, no qual se empregavam frutos e mel.;
Atribuíam a esta planta as maiores virtudes, e bastava esfregar-se com ela para se obter o que se desejava. Curava todas as doenças e tinha o poder de reconciliar os corações que a inimizade havia separado. Quem tocasse esta planta milagrosa sentia instantaneamente a paz e a alegria nascer nos seus corações.
Criam que a morte dos homens notáveis suscitava tempestades. O trovão, os terramotos, os meteoros, os eclipses, etc. anunciavam a morte de um personagem importante.
Os druidas deixaram acreditar ao povo que eles podiam mudar de forma, ou viajar pelos ares, segundo a sua vontade; mas a mais bárbara das suas superstições era imolarem vítimas humanas, uso que só terminou com a extinção do druidismo. Os numerosos éditos dos imperadores romanos contra este crime, mostra quanto ele estava em uso nas Gaulas e quanto custou a exterminar.
A mais solene das suas cerimónias era a colheita do Gui du Chêne (agarico do carvalho). Esta planta parasita nasce sobre algumas árvores; mas os druidas criam que Deus tinha principalmente escolhido o carvalho para lhe confiar esta preciosa planta.
Percorriam as florestas com o maior cuidado e se felicitavam entre si quando, depois de longos e peníveis trabalhos e buscas, descobriam uma certa quantidade de agarico.
Não se podia colher esta planta senão no mês de Dezembro, no 6º dia da Lua.
Este mês e o nº6 eram sagrados para os druidas. Era sempre no 6º dia da Lua que eles faziam seus principais actos religiosos.
Chegados ao pé do carvalho que o agarico envolvia, o chefe dos druidas subia à árvore e cortava a planta com uma foicinha de ouro e os druidas a recebiam com um grande respeito no sagum (espécie de saia branca.) Depois imolavam-se dois touros brancos e um festim se seguia, findo o qual se invocava a divindade para que ligasse à planta recém-colhida uma felicidade experimentada por todos os circunstantes, a quem se distribuía uma pequena parte do agarico. Era no 1.° dia do ano que se sagrava o gui, que se distribuía ao povo.

Principais máximas dos druidas 
(Estas máximas só as relatamos pela tradição que delas chegou aos nossos dias, visto que os druidas nunca as escreviam)
  • 1. É indispensável ser instruído nos bosques sagrados, pelos sacerdotes.
  • 2. O agarico deve ser colhido com um grande respeito, sempre que seja possível, no 6º dia do ano, e só com uma foicinha de ouro se pôde cortar.
  • 3. O céu dá origem a tudo que é criado.
  • 4. Não se deve confiar o segredo das ciências á escritura, mas sim à memoria.
  • 5. É indispensável ter grande cuidado com a educação dos meninos.
  • 6. Os desobedientes não podem assistir aos sacrifícios.
  • 7. As almas são imortais.
  • 8. As almas passam a outros corpos depois da morte dos que elas animaram.
  • 9. Se o mundo vier a destruir-se, será pela agua ou pelo fogo.
  • 10. Em ocasiões extraordinárias é preciso imolar um homem : poder-se-á predizer o futuro, regulando-se pelo modo de sair do corpo do sacrificado, pelo correr do seu sangue, ou pela ferida que o ferro lhe abrir.
  • 11. Os prisioneiros de guerra devem ser imolados sobre os altares, ou serem fechados em cestos de vime para se queimarem vivos em honra dos deuses.
  • 12. Não se deve permitir o comércio com os estrangeiros.
  • 13. O último que chegar à assembleia dos Estados deve ser punido com a morte.
  • 14. Os meninos devem ser criados até à idade de 14 anos fora da presença de seus pais e mães.
  • 15. O dinheiro emprestado nesta vida, será restituído aos credores, no outro mundo.
  • 16. Há um outro mundo, e os amigos que se matam para acompanhar os seus amigos mortos, viverão com eles eternamente no outro mundo.
  • 17. Todas as cartas entregues ao cadáver, ou lançadas nas suas fogueiras, serão fielmente entregues a quem pertencera, no outro mundo.
  • 18. O desobediente seja expulso, que ele não receba nenhuma justiça, nem seja admitido em nenhum emprego.
  • 19. Todos os pais ou chefes de família são reis em suas casas : têm o poder de vida e morte sobre suas mulheres, filhos e escravos.
Das druidessas
Já disse que toda a moral dos druidas se reduzia a três pontos principais: honrar os deuses, não prejudicar o próximo e ser corajoso. Como conciliar com estas máximas sublimes, a que dá aos pais o direito de vida e morte sobre a sua família?
O abade Banier porém, diz que esta ilimitada autoridade paterna não era fundada em lei alguma positiva, mas somente no amor e respeito,
Júlio César e Tácito descrevem com prazer o respeito que os gauleses e os germanos tinham a suas mulheres: as dos druidas partilhavam a autoridade com seus maridos: eram consultadas nos negócios políticos e religiosos. Havia mesmo nas Gaulas templos erectos depois da conquista dos romanos, nos quais as druidessas exclusivamente ordenavam e regulavam tudo o que dizia respeito à religião, e dos quais a entrada era interdita aos homens,
Mr. Mallet, na sua excelente Introdução à Historia da Dinamarca, diz que os celtas e gauleses se mostravam superiores aos orientais, que passam da adoração ao desprezo e dos sentimentos de um amor idolatra aos de um ciúme desumano ou aos de uma indiferença, mais insultante ainda que o ciúme. Os celtas consideravam suas mulheres como iguais e companheiras, cuja estima e ternura não podiam ser gloriosamente adquiridas senão por esforços de amor e coragem.
As poesias de Ossian provam que os habitantes das Ilhas Britânicas sempre levaram estes respeitos e estas atenções além de outra qualquer nação do mundo. Fieis à beleza que seu coração tinha escolhido, nunca tiveram simultaneamente várias mulheres, e muitas vezes suas esposas seguiam, vestidas de homem, seus maridos à guerra.
Existiam três classes de druidessas:
  • as primeiras, viviam no celibato ;
  • as segundas, ainda que casadas, residiam nos templos que elas serviam, e não viam seus maridos senão um só dia em cada ano;
  • as terceiras não deixavam seus esposos e tinham o cuidado do interior de suas casas.
Apesar destas diferenças, as druidessas não formavam verdadeiramente senão duas classes. A primeira era composta de sacerdotisas, e as mulheres de segunda classe eram apenas ministras das sacerdotisas, de quem cumpriam as ordens.
A habitação mais ordinária das druidessas era nas ilhas que bordam as costas das Gaulas e da Grã-Bretanha. Os druidas também habitavam algumas destas ilhas; mas nas que eram residência dos druidas de um sexo, não havia de outro.
Eram os druidas, de ambos os sexos, que habitavam estas ilhas, que mais se davam à magia, e os povos das Gaulas e da Inglaterra criam geralmente que eles podiam excitar ou aplacar os furacões e tempestades.
Os druidas por fim abandonaram às druidessas a arte de adivinhar, segundo a influência dos astros, na convicção de que elas teriam, mais do que eles, o dom de fazer persuadir os povos da verdade das suas predições; por isso as encarregavam de todas as perguntas sobre o futuro. Elas davam respostas tão habilmente combinadas, que a sua reputação sobre oráculos se espalhou por todo o mundo, vindo-as consultar de todas as partes e as suas decisões inspiravam infinitamente mais confiança que os célebres oráculos da Grécia e da Itália.
Os próprios imperadores romanos as mandavam muitas vezes consultar, enquanto dominaram as Gaulas. A história, todavia tem conservado muitas das respostas das sybillas, e não faz menção especial de nenhuma das druidessas.
Suetónio, Aurélio-Victor e Séneca sustentam que a religião druidica foi abolida sob o império de Cláudio; mas, como os druidas subsistiram muito mais tempo, parece que estes autores não quiseram falar senão nos sacrifícios humanos, que este imperador proibiu expressa e severamente. O que é certo, é existirem ainda no país chartrense até ao meiado do século quinto. Parece certo que a ordem druidica só deixou de existir quando o cristianismo triunfou inteiramente das superstições dos gauleses e este triunfo só se conseguiu mais tarde em algumas províncias, e a religião druidica custou muitíssimo a desarreigar nas Gaulas e na Grã-Bretanha.
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09/04/2016