sábado, 29 de abril de 2017

dos Comentários (29) - quinas otomanas

Adiciono um comentário de David Jorge que nos chegou por email.
Respeita a uma bandeira que se pode ver num atlas otomano de 1551, e onde figura bem destacada sobre Istambul. Curiosamente essa bandeira é muito parecida com o padrão português das quinas - talvez apenas com a diferença do uso das cores estar invertido.
Quinas habituais no Séc. XV 
- vermelho circunda o fundo azul com as quinas (brancas ou pretas)

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Mais uma vez lhe escrevo para lhe divulgar um mistério que me deixou algo perplexo.
Recentemente adicionei mais um atlas "arabe" à biblioteca:
1551 - Mohammmad, Ali ibn Ahmad ibn  - Atlas Portulano do Mediterrâneo - الصفاقسى

A Galica coloca-o por meados de 1551.

A maioria das cartas estão orientadas por meio de setas que "tudo indicaria" apontam para Norte.
Como exemplo coloco as seguintes imagens:



... etc. Até aqui não há nada de invulgar. 
A única carta que não tem a seta a apontar para Norte, apontando ela para ESTE, tem uma bandeira muitíssimo estranha sobre Istambul.


É uma bandeira com 5 besantes "azuis" sobre fundo vermelho.

Há semanas que procuro, sem sucesso, qualquer indicio histórico do império otomano que possa justificar esta bandeira.

Terá havido algum erro clínico na pintura desta bandeira especifica que levasse a uma má interpretação?
As restantes têm o mesmo padrão "entrelaçado" (desenhado muito fino talvez a lápis) no centro, no entanto apenas têm 4 pintas não 5 como esta.
As únicas bandeiras otomanas que encontrei até agora com a forma idêntica a esta são completamente vermelhas com texto a dourado, (o conteúdo é semelhante ao da bandeira antiga da dinastia Nasrid de Granada).


No entanto nenhuma destas bandeiras tem o que quer que seja a ver com a bandeira nessa carta.

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Email de David Jorge  (21 de Abril de 2017)
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Ver também a misteriosa bandeira com 5 quinas apresentada em Jerusalém no Livro de Marinharia:

sábado, 22 de abril de 2017

Vale da Sombra da Morte

A Guerra da Crimeia (1853-56) foi o primeiro grande conflito a ter documentação fotográfica, uma boa parte pelo fotógrafo inglês Roger Fenton, e sendo particularmente célebre a fotografia que ficou conhecida como "Valley of the Shadow of Death" (invocando o Salmo 23 do Velho Testamento):
Guerra da Crimeia - Valley of the Shadow of Death, por Roger Fenton

O único factor que identifica tratar-se de uma foto de guerra são as balas de canhão dispersas, acumuladas numa estrada, num vale da Crimeia, onde se deu a desastrosa "carga de cavalaria ligeira".

Num conflito que consta com centenas de milhares de mortos, nas fotografias de Fenton não se vê um único... e esse é um ponto interessante, não se conhecerem fotografias das vítimas. Fenton regista poses em campo de comandantes, de soldados, a disposição de navios, e até ilustra mesmo a sua caravana fotográfica, mas o mais que se lhe conhece é a foto de um ferido a ser assistido:
Roger Fenton: Um zuavo (francês argelino) ferido é assistido, pose das tropas, 
caravana fotográfica de Fenton, e inúmeros navios no porto de Balaclava 

Coloca-se então a questão - havia alguma proibição efectiva à divulgação de fotos de mortos?
Certamente que não seria muito conveniente ver a parte desgraçada, onde do heroísmo restavam apenas um empilhar de mortos em poses tenebrosas. A questão seria mais de saber se se tinha tratado de uma opção circunstancial, ou generalizada... 

Na década de 1850 as fotografias davam os seus primeiros passos, após os primeiros daguerreotipos, inventados duas décadas antes, e eram já vários os fotógrafos que se aventuravam pelo mundo, como o caso de Felice Beato, que divulgou as primeiras fotos da China e Japão. 

Em 1860, aquando da 2ª Guerra do Ópio, Felice Beato mostra a incursão anglo-francesa nos Fortes Taku, com toda a crueza do resultado em morte dos defensores chineses:
Felice Beato (1860) - tomada dos Fortes Taku na 2ª Guerra do Ópio.

Portanto, ainda que houvesse alguma tentativa de contenção, Felice Beato terá arranjado forma de fazer chegar e divulgar as suas fotografias na Europa.
Já antes, em 1859, no decurso da 2ª Guerra de Independência Italiana, na batalha de Melegnano, aparecera uma fotografia dos corpos mortos em combate.
Cemitério de Melegnano após a batalha (1859) - imagem da foto estereoscópica

É significativa a abundância de fotos estereoscópicas, visíveis em perspectiva a 3 dimensões, logo no início das próprias imagens fotográficas. A técnica não sendo complicada, acabou por ser progressivamente abandonada, nas décadas seguintes - mas ainda hoje poderia ser facilmente retomada (como uma novidade com mais de 150 anos...)
Outro aspecto curioso, que se pode ver nas fotografias de Felice Beato, era a sua pintura posterior, como neste exemplo, das suas muitas fotografias do Japão:
Felice Beato - Samurais japoneses - fotografia pintada (imagem).

Finalmente, o aspecto menos glorioso da guerra acabou por ser espelhado nos fotógrafos da Guerra Civil Americana, nomeadamente Mathew Brady, Alexander Gardner ou Timothy O'Sullivan, que focam particularmente a carnificina ocorrida, nos momentos históricos mais significativos - como no caso da Batalha de Gettysburg (1863):
Timothy O'Sullivan (1863) Batalha de Gettysburg - corpos de soldados unionistas (imagem)

Há uma diferença significativa entre o que se passa nos últimos 150 anos, e antes disso...
A partir de 1850 as técnicas fotográficas generalizam-se muito rapidamente, e desde aí todos os acontecimentos relevantes, que não foram apenas episódios muito pontuais, em sítios remotos, foram fotografados. Se as fotografias foram tornadas acessíveis ou não... pois isso já é um assunto diferente, dado que continua a haver um profundo secretismo histórico que compromete heranças de estados e nações. Mas é claro que há uma diferença muito significativa entre os quadros encomendados, com um certo cariz heróico na guerra, e a crueza da realidade que é captada por uma máquina fotográfica, como se vê bem neste último exemplo de Gettysburg, que fotografa os vencedores... mortos no campo de batalha.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Ao mau mar ia (3)

Para terminar os textos sobre a cartografia portuguesa, sobre as cartas de marear do Séc. XV, que serão mais tarde abandonadas, é talvez mais significativo o caso da carta "Pedro Reinel a fez" já que mistura a representação dos portulanos, essencialmente feitos pelo rumo com a bússola (ou agulha de marear), com uma referência aos paralelos. Aliás, é considerado que esse é o primeiro mapa que se conhece com uma escala de latitudes.
"Pedro Reinel a fez" - o primeiro mapa com escala de latitudes.

As linhas de rumo numa carta de marear são fixadas num certo pólo arbitrário, distinto do pólo norte, mas fixando uma direcção a partir daí, funcionam como meridianos, definindo um círculo maior.
Ao contrário, ao fixar a posição de latitude, os paralelos são círculos menores (à excepção do Equador), e deixam de pretender ter uma distância constante em graus, caindo-se no problema típico dos planisférios, como na projecção de Mercator, em que há uma excessiva distorção junto aos pólos - por exemplo, o Círculo Polar Árctico tem menos de metade do comprimento do Equador.

No entanto, a grande vantagem de usar as latitudes, em conjunto com a orientação do rumo da bússola, era a de permitir definir não apenas uma direcção, mas também uma forma de medir o afastamento já feito, seguindo nessa direcção. Ou seja, poderia dar-se uma direcção SO para seguir na bússola, até se atingir uma certa latitude, por exemplo, a latitude de um trópico de Cancer, e aí mudar para uma outra direcção até outra latitude. Essa seria a principal novidade que as cartas portuguesas traziam face às representações anteriores. 

Pedro Nunes descreve no tratado em defesa da carta de marear uma diferença principal para vantagem dos nossos marinheiros:
Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as de que os antigos usavam, que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha. E pode ser que seja esta a razão, porque não se atreviam a navegar senão com vento próspero, que é a popa, e iam sempre ao longo da costa, enquanto podiam, como verá quem diligentemente ler em Ptolomeu as navegações que os antigos faziam pelo mar da Índia.As nossas cartas são muito diferentes delas, porque repartimos as agulhas que em todo o lugar nos representam o horizonte, em 32 partes iguais, e podemos governar a uma parte destas quanto espaço queremos, sem embargo que no processo do caminho se mudem os horizontes e alturas.
reforçando mais à frente - "… senão que a carta não é planisfério, que nos faça quanto avista aquela imagem e semelhança do mundo, que fazem os de Ptolomeu, e outros que aí há, nos quais há somente paralelos e meridianos."

Portanto, a grande diferença das cartas de marear é que, para além de outros truques escondidos, estavam particularmente adaptadas à arte de navegação com bússola, e nisso faziam grande diferença das cartas antigas. Terá sido essa maior diferença que terá permitido a Roma autorizar uma exploração para além dos limites restritos pela antiga concepção do mundo. 
A linha que partia para Oeste, numa rosa-dos-ventos em Lisboa, não seria o paralelo de Lisboa, seria um meridiano com pólo em Lisboa. Ainda que para distâncias próximas a diferença não fosse muito grande, para maiores distâncias a distorção levaria a conceitos completamente diferentes, como podemos ver na imagem seguinte:
Diferença entre a linha paralela (rosa) e uma linha meridiana na carta de marear (vermelho).

Também por isso, o limite de distorção que esse rumo por linhas meridianas seguiria, acabava por ficar delimitado pela junção de novas rosas-dos-ventos, definindo um certo limite de aplicabilidade para o uso de um rumo constante. Parece ainda claro que havia ainda um misto de novidade e incompreensão de associar o pólo norte magnético ao pólo norte, ou mesmo para além disso, acreditando numa certa infalibilidade da navegação por bússola, algo que só veio a ser melhor esclarecido por João de Lisboa.