quarta-feira, 31 de maio de 2017

Superstição Colombina

Um filme muito interessante de 2009, intitulado "Mr. Nobody", começa por abordar uma questão comportamental de pombos, que foi associada à nossa ideia de superstição. As experiências foram começadas por volta de 1948 por Burrhus Skinner, e envolviam a cognição de pombos.
Mr. Nobody (filme de 2009) - Pigeon Superstition

A primeira sequência de imagens são de uma experiência diferente - Robert Epstein em 1984 apresentou um pombo que resolveu o chamado "problema da caixa e banana", cuja resolução era suposta ser exclusiva da macacada. No caso, empurrar uma caixa para lhe permitir alcançar a banana (conforme já vimos os corvos suplantam estas proezas).
No entanto, as imagens seguintes, já com locução, explicam a associação dos pombos a acções que levavam à abertura da portinhola com comida, como o simples premir de um botão com o bico.
Só que Skinner reparou em algo diferente... ao não associar nada à abertura da portinhola, era o próprio pombo que associava algum dos seus movimentos a essa abertura. Conforme é dito, o comportamento do pombo passava a ser aquele que fizera antes da porta abrir. Se batera as asas, vai bater as asas, acreditando que isso irá abrir a portinhola.
Quando o pombo bicava o botão da porta, havia uma causalidade efectiva, engendrada pelos promotores da experiência. Porém, depois, o que o pombo fazia (como bater asas) não se relacionava em nada com a abertura da portinhola... mas o pombo repetia o movimento, acreditando numa causalidade, e que assim não seria mais do que simples superstição.

No título coloquei o epíteto "colombina" não apenas por se relacionar com pombos, mas porque vou associar este episódio ao navegador Colombo... mas poderia associar-se a muito mais gente.

Interessa que as interacções que temos com o mundo são interpretadas no sentido de influenciar o resultado... procuram-se relações de causa-efeito, para que, com mais ciência ou mais fé, ao repetir as mesmas causas, se preveja o mesmo efeito.

Uma inteligência primária é associada a quem conhece causas que influenciam resultados. Essa inteligência primária é científica quando a comunidade constata (ou aceita) essa causalidade, e vai ao ponto de falar em "leis". À ciência aplicada pouco interessa entender a causalidade... constatando que existe relação, aceita-a como "lei da natureza".
Nesse sentido, o que o pombo fez quando bicou no interruptor, ou quando bateu as asas, foi o mesmo tipo de associação primária entre esse acto e o abrir da portinhola. A interpretação de que bicar o interruptor é ciência, e o bater de asas é superstição, não pertence ao entendimento do pombo, pertence ao entendimento de quem faz a experiência.

Não existe apenas esta inteligência primária... há ainda uma inteligência secundária, que manipula a inteligência primária. A inteligência secundária pode dispensar o entendimento primário, fazendo uso indirecto dele, vendo os primários como "patos" a serem usados ou caçados.
A sociedade apenas estimula o desenvolvimento da inteligência primária, já que a outra forma é simples arte do jogo, do trafulha, do especulador, do manipulador, que normalmente detém o poder.
Por exemplo, a um jogador de póquer interessa fazer crer ao opositor a previsão do seu jogo, para depois o surpreender em contrário, quando a quantia em jogo for apreciável.
Ou seja, uma inteligência secundária parasita as inteligências primárias, fomentando a sua credulidade num entendimento previsível, para tirar partido disso. Em muitos aspectos, essa inteligência secundária é uma inteligência feminina, porque as mulheres, afastadas de um protagonismo directo, aprenderam a influenciar os parceiros para agir de acordo com os seus interesses, sem o mostrar. Digamos que se o pombo tinha que perceber que movimento fazia abrir a portinhola, a pomba teria apenas que usar o seu charme para o convencer a partilhar a comida.
O mesmo padrão matriarcal acabou por ser seguido depois no controlo das civilizações. A elite, tal como a bela pomba, apenas precisava de se mostrar como apetecível, ou desejável, para receber presentes de agrado dos pombos. Claro que em casos extremos, também convinha à elite poder ser ameaçadora... não por si, mas compensando elementos agressivos nesse sentido, ou seja, uma tropa.
Porém, a forma mais subtil de prender um sábio ao seu orgulho, é desafiá-lo a construir a melhor prisão, e colocá-lo dentro como último teste... enfim, evadindo-se, seria por falha do projecto - a prisão inviolável.

Para a elite, ao tempo de Colombo, a América era um segredo de Polichinelo. Mas, por oclusão, o prato forte do jogo era apenas a Índia, a China ou o Japão, relatados por Marco Polo... e foi nesse sentido que o pombo colombino seguiu o caminho de oriente pelo ocidente. Enquanto o pombo colombino batia as asas, visitando a cada vez a sua Índia, chamando "índios" aos nativos americanos, a real pomba espanhola recebia os novos territórios sem esforço. E se o pombo colombino caiu em ridículo com a evidência da ilusão, os benefícios desse erro não tardaram a render em ouro à nobreza espanhola.

Ocorre, por demasiadas vezes, a manipulação duma inteligência primária que, em troca de pequenos prémios, aceita dar tudo o que tem, a promotores secundários, que visam os mesmos objectivos, mas sem para isso fazerem esforço algum. No entanto, quer na situação primária, quer na situação secundária, a inteligência visa usufruir do mesmo resultado, apenas usando meios diferentes. Quer o rei, que manda construir, quer o sábio que constrói, ambos visam a construção da mesma prisão inviolável, independentemente de um visar colocar lá o outro.
A inteligência secundária funciona como predadora da primária, tal como em trocas energéticas de sobrevivência, os carnívoros se alimentam de herbívoros... e é mais ou menos neste nível que se coloca a acção das agências de "inteligência", ditas de espionagem.
A competição a nível superior não é no nível dos super-canívoros, é simplesmente uma reflexão sobre o próprio uso da inteligência. Ou seja, um terceiro nível é apenas final se reflectir sobre o próprio uso da inteligência, sobre o seu propósito. Este terceiro nível não visa os mesmos objectivos, não se interessa sobre a matéria produzida, mas sim pela razão global que une as duas concepções anteriores, tipicamente locais e limitadas.

Por exemplo, nas mitologias clássicas os deuses não se tornaram deuses por nenhuma razão lógica... simplesmente nasceram deuses. O que os cientistas tentaram fazer durante estes tempos foi construir razões mais lógicas, mais sustentáveis, para terem poderes sobrenaturais, e acima disso, quem fomenta o desenvolvimento científico, usa esses poderes a seu belo prazer, com o intuito de a eles ter direito, sem quase nada fazer por isso. A um terceiro nível interessa saber se esta relação, se esta circunstância de desenvolvimento e relacionamento, tem algum sentido global acima desse propósito básico de supremacia local e limitada. Interessa entender qual a consistência global e final de um universo que se envolve no desenvolvimento destas diversas conexões.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Camara obscura

Quem já esteve num quarto completamente escuro, com a luz a entrar apenas por uma pequena frincha, poderá ter observado o fenómeno da "câmara escura" - ou seja, vemos reflectido numa parte do tecto ou da parede do quarto, o que se passa na rua... mais do que isso, passa-se como um filme a cores!

O princípio base de qualquer aparelho fotográfico, inclusive das actuais câmaras digitais, é esse princípio da câmara escura... que estranhamente não é muito divulgado, mas que muito provavelmente seria do conhecimento pré-histórico.

Para ilustrar o assunto, usamos as experiências que Abelardo Morell fez recentemente nalguns quartos, com paisagens que são por si esclarecedoras do local onde foram feitas.
Abelardo Morell - Camera Obscura (longa exposição em quartos escuros) 
- quarto no Hotel Frantour em Paris (1999), e quarto no Hotel Loews em Filadélfia (2014).

A questão que se pode colocar, para quem desconhece fotografia, é a de como as paisagens exteriores acabam por ficar tão nitidamente reflectidas no interior das paredes do quarto escuro?
- Bom, esse é o princípio da câmara escura...
... a luz entra dentro da câmara (do quarto) por um pequeno orifício, as imagens aparecem invertidas, e apresentam melhor definição quando o buraco é mais pequeno... tendo por outro lado a desvantagem de que se entrar menos luz, ver-se-à muito pior a imagem exterior. Quando o buraco aumenta de dimensão, ainda que entre mais luz, as imagens acabam por ficar muito mais desfocadas.
No caso das experiências feitas por Abelardo Morell, como ele visou uma grande definição, o orifício deveria ser pouco maior que o buraco de uma agulha, o que implicava tão pouca luz, que as fotos que vemos em cima tiveram entre 5 e 10 horas de exposição.

Interessa aqui notar que este tipo de fenómeno é perfeitamente natural e visível em múltiplas situações, não sendo necessária exposição exagerada. A wikipedia tem uma página muito boa sobre a câmara escura, onde é ilustrado um exemplo visível no sótão do castelo de Praga:
Sótão de Castelo em Praga faz câmara escura com imagem do Palácio no exterior. (wikipedia)

Interessa que independentemente de se conseguir registar a imagem numa película, ela seria visível desde tempos imemoriais, especialmente em cavernas.
Por exemplo, na Idade do Gelo, devido ao frio, se os homens tentassem tapar a entrada, um simples buraco nessa cobertura iria provocar o efeito de câmara escura nas paredes da caverna...
Isso permitiria, por outro lado, que as paredes da caverna (próximas do exterior) servissem como telas prontas a uma cópia do desenho projectado naturalmente - ainda que de forma invertida.
Tanto mais, quanto aos pedreiros foi possível com tijolos tornar quartos escuros, e notar que uma pequena abertura de luz permitiria ver o exterior reflectido nas paredes, como uma imagem fotográfica. Assim, tais técnicas estariam ao dispor desde o tempo das primeiras construções.

Portanto, a ideia subjacente à fotografia existia há milénios. Se Platão na Alegoria da Caverna falava em sombras projectadas, o seu discípulo Proclo no Séc. V, comentava o assunto em termos do efeito de reflexão que pode ser visto na câmara escura.

O processo foi usado muito certamente para fazer desenhos, ou para treinar o traço, sobre a imagem desenhada. Não é assim de excluir que alguns desenhos, até pré-históricos, tenham sido feitos acompanhando o traço visível na parede rochosa.
Os quadros romanos mais realistas, como os retratos de Fayum, podem ter sido elaborados usando esta técnica, colocando a pessoa retratada no exterior, e o pintor no interior de uma câmara escura.
É pelo menos reportado que alguns quadros holandeses do Séc. XV, e seguintes, podem ter sido produzidos desta forma, e é assumido que se tratou de uma técnica de pintura até ao aparecimento das primeiras fotografias no Séc. XIX.
Ou seja, a grande novidade no Séc. XIX foi apenas o conseguir-se fixar a imagem, usando uma emulsão de prata muito sensível à luz... mas nem será de excluir que existissem outras substâncias que reagindo à luz, como a fotossíntese, permitissem um registo da imagem vista.

Um exemplo assumido da técnica da Camara Obscura é visto nas pinturas de Canaletto, nomeadamente nas suas paisagens de Veneza. Além disso, pelo simples uso de uma lente prismal, temos o princípio da Camara Lucida (ou câmara clara) que permite a projecção do que se vê numa mesa de pintura.
A tese de que este tipo de técnicas permitiu a grande diferença entre as pinturas pré-renascentistas e as pinturas realistas seguintes foi defendida por Hockney e Falco.
Convém notar que com o aparecimento e divulgação da fotografia, ficando mais clara a facilidade de fazer quadros realistas, isso levou ao aparecimento das técnicas alternativas de pintura - que se seguiram, desde o impressionismo até aos estilos completamente abstractos e desligados da realidade.

Como mágicos que não gostam de revelar os seus segredos, com medo do público achar menos fascinante o seu trabalho de ilusão, também os pintores não gostaram de ser associados a estas técnicas de simplificação, que usavam o auxílio da câmara escura, da câmara clara, ou outros artifícios com espelhos ou lentes... 
Sempre que existiu uma diferença significativa entre o conhecimento do mago e a ignorância do espectador foi possível iludir plateias. Se algumas destas ilusões eram assumidas como tal, para conforto do espectador, muitas outras foram usadas como simples truques de magia visando captar uma credulidade religiosa... e isso seria tanto mais facilitado quando se visava impressionar crianças, ou camponeses menos instruídos, sendo ainda claro que não foi preciso muito para iludir um desaparecimento da Estátua da Liberdade perante uma plateia incrédula.

Finalmente, só uma pequena nota acerca da palavra "câmara"... que, como se poderá ler no Vocabulário de Bluteau, trata-se "da casa em que se dorme", ou melhor, a "câmara" é onde está a "cama", portanto um local privado, com pouca luz. Desse significado antigo, aos outros significados que se lhe seguiram, que foram desde "camareiro" (moço que assistia o senhor na câmara), a "camarata" ou "camarada", na partilha de camas, até às "câmaras" municipais, foi apenas um pequeno passo de privacidade.