terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sirenes

Na 2ª Parte da Monarquia Lusitana, Frei Bernardo de Brito vai arriscar um tema controverso:
- "Homens Marinhos", que é como quem diz no feminino "sereias" ou "sirenes"...
Brito sabe que o tema é controverso, e diz (pág 7, livro 5):
Nem pareça isto coisa impossível aos leitores escrupulosos de coisas pouco vulgares, porque no mesmo tempo, mandaram os Franceses outra embaixada ao Imperador Tibério, sobre um número grande destes monstros, que o mesmo mar lançara mortos na praia, e afirma Plínio (...)
Brito já antes tinha citado Plínio para falar numa "mulher marinha" que o mar lançara na costa de Lisboa, "cujos gritos ou uivos, ao tempo que morria, ouviram os moradores da terra a grande distância". Talvez faltasse a Brito o termo "sirene" que para além de designar "sereia", foi depois (no Séc. XIX) usado para designar um som característico de alarme. Mas, de entre os inúmeros exemplos que Brito cita, é também frequente serem mudos - "Meyer Baliollano, nos Anais da Flandres, conta que em 1403 foi tomada e trazida à cidade de Harlem uma mulher marítima muda, mas perfeita e proporcionada nas demais partes, a qual viveu muitos anos(...)".

A sereia, da Copenhaga de Hans Christian Andersen.

A questão habitual com que nos defrontamos ao ler textos antigos é misturar-se uma sequência de relatos perfeitamente concordantes com a história oficial - Brito está a relatar a época de Tibério - com relatos inverosímeis - Brito relata uma embaixada Lusitana a Roma por causa de um "homem-marinho" [cf. Nota 1].
Como Brito sabe que o assunto seria risível, avança com uma dezena de exemplos documentados (Plínio, Damião de Goes, Nicephoro Calisto, Mariano, Meyer Baliollano, Guiciardino, Luis Veues, Alberto Magno, Pineda, Cornelio de Amsterdam, Pyerio Valeriano e o Conde D. Pedro).

Não se pode acusar Bernardo de Brito de falta de citações e documentação. A História actual usa os mesmos métodos. A sua diferença face a qualquer autor moderno é que hoje há uma auto-censura educacional, que leva a omitir assuntos, sob pena de ser alvo de chacota, por não ser "sério".  
É isso que fará a Escola que faz Escola a partir de Alexandre Herculano. Corta todas as fontes antigas que contrariem o "politicamente incorrecto", que invoquem o "fabuloso". É uma forma diferente de censura, é mais poderosa, benigna e eficaz - aparece sob a forma de auto-censura para evitar a exposição ao ridículo. Um pensador que estiver certo de uma teoria contra-corrente sofre hoje uma censura tão poderosa quanto a que sofreu Galileu. Galileu não conseguiu convencer os outros, hoje ao fim de algum tempo o pensador é levado a desconfiar da sua sanidade. Galileu viu os seus livros banidos, o tal pensador nem conseguiria publicar um livro sério.

Em condições normais, rir-me-ia desta crença em "homens-marinhos", explicitada por Bernardo Brito. Porém, as condições estão longe de ser normais... houve uma ocultação demasiado grande de demasiados assuntos. Há razões objectivas de desconfiar - não apenas das afirmações de Brito, mas também da sua negação, pelos opositores naturais.
Resta-nos o bom senso, que vamos acumulando pela experiência... e sob esse aspecto, não tenho nenhuma informação que me permita eliminar definitivamente a hipótese de "homens-marinhos", e ainda que considere implausível, não a vou rejeitar a priori essa possibilidade.

Acabando de falar de sereias, no correr do texto sobre o tempo de Tibério, Brito vai abordar logo de seguida a morte de Jesus Cristo. Mais uma vez parece-nos estranho, politicamente incorrecto, mas Brito parece cingir-se à cronologia - ambos os factos teriam ocorrido na mesma governação.
Sob esse assunto, Bernardo Brito não será menos polémico, mas a fácil censura encontrará aí a oposição da  fé católica, a quem não interessam sereias, mas para quem os acontecimentos da vida de Jesus fazem parte da sua religião. Diz Brito
Tornando pois à continuação do império e vida de Tibério Caesar, conta Paulo Orósio, e Eutropio, que aos anos 16 da sua monarquia, no mês de Março houve um terramoto universal no mundo, acompanhado de um eclipse tão extraordinário, que não houve sábio (havendo grandes naquele tempo) que soubesse dar razão a tão novo modo de oposição como então tiveram o Sol e a Lua : tudo o qual foi aquele geral sentimento que a Natureza mostrou na morte do seu Criador, e nosso Redentor Jesus Cristo, referido no Evangelho Sagrado (Mateus, Marcos), e por coisa tão notável, e que não menos se viu nestas partes de Portugal e Espanha (onde diz Laimundo que se mostravam rochas abertas deste terramoto), que nas de Ásia e Judeia (...)
Também sobre este assunto poderia Bernardo Brito citar Plínio, já que conforme aqui referimos é suficientemente estranho o registo de anomalias que poderiam estar na causa do desajuste do Solarium Augusti, o enorme relógio solar que Octávio Augusto fizera no Campo de Marte, e que a partir dessa altura tinha ficado inútil.
É ainda curioso Brito estabelecer exactamente o dia da morte de Jesus - sexta-feira, 25 de Março, incluindo o nome dos "ladrões" também crucificados (Dimas, arrependido, e Gestas), falando ainda da ressurreição a 27 de Março, de ter feito S. Pedro seu vigário a 4 de Abril, junto ao mar da Galileia, e da "subida ao céu" apenas a 6 de Maio... tendo após 10 dias "consolado e confirmado os seu discípulos com a vinda do Espírito Santo, dando-lhe a força e sabedoria necessárias (...)"
Creio que estes detalhes, com datas precisas, estão completamente omissos na tradição católica.
Ao contrário, as datas adoptadas para a Sexta-Feira Santa usam como referência a Páscoa judaica, ajustada ao calendário lunar e não solar. Isto não deixa de ser interessante porque o carácter universal que tomou o cristianismo, não deixou de se vergar à agenda judaica. Isso poderia ser aceitável no islamismo, que vê Jesus apenas como um profeta, e usa ainda o calendário lunar. No entanto, a Bíblia católica, apesar de considerar Jesus como o Messias, não deixou de integrar o Testamento dos Velhos, incorporando por completo toda a tradição judaica fundamental, enquanto nos Evangelhos são raras as referências a esse texto, praticamente dispensando a sua leitura.

Nota 1: (26/12/2012) Sobre a embaixada que os lusitanos enviaram a Tibério diz Bernardo Brito:
"Por este próprio tempo conta Plínio que mandaram os portugueses de Lisboa uma solene embaixada a Roma, e com ela dar conta ao imperador de um portento que aparecia naquela costa, que era um homem marinho, da forma que vulgarmente o pintam, e saindo em terra, entre as rochas que pendiam sobre o mar, e faziam uma semelhança de cova, tocava uma buzina feita de concha de búzio, com tanta força, que o som dela fez advertir os moradores da terra, em quem a tangia, ficando tão admirados de sua visita, que lhe pareceu matéria bastante para com ela formarem a embaixada."

Nota 2: Convirá não esquecer também a descrição do "monstro-marinho", a Ipupiara de Pero de Magalhães Gandavo.

1 comentário:

  1. Nem a propósito dos últimos textos, surgiu nestes dias um Artur Batista, cujas profecias foram recebidas como as de um rei. Sendo afinal descoberto que, à semelhança de um novo embuste keynesiano de Alves dos Reis, se tratava de um conto e canto de sereia em que foi embalada a mais "respeitável" comunicação social portuguesa, com o presente natalício de Santos Nicolau (cf. delitodeopiniao). Não é de excluir que o personagem em causa tenha apenas interpretado um papel numa orquestrada comédia de bastidores.

    http://www.portais.ws/?page=art_det&ida=36979
    http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/5079782.html

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